DE ONTEM PARA HOJE, José Paulo Paes, Boitempo Editora 1996. Ilustracoes de Enio Squeff, dedicado a sua esposa. Está escrito” Para Dora retrospectivamente “. A Apresentação é sucintíssima: ” Á semelhança dos quinze coligidos em A meu esmo ( Florianópolis, Noa Noa, 1995), estes dez outros poemas desgarrados foram escritos em diferentes épocas. Deixei de incluí-los nas coletâneas que então publiquei porque destoavam do espírito delas. Ficaram, díspares e enjeitados, nas antologias ou periódicos que um dia os acolheram. Quatro jaziam ainda em estado de incompletude numa pasta de guardados. Dali os resgatei para completar, os inéditos, ou aperfeiçoar, os éditos, a fim de poder atender em tempo hábil ao convite de Ivana Jinkings, da Boitempo.
O título com que ora aparecem serve para lembrar-lhes a idade – alguns remontam aos anos 40 – e o recondicionamento a que foram submetidos com vistas a torná-los mais palatáveis ao gosto atual, tanto do autor quanto do leitor, se algum houver.
Esperançosamente,
JPP “.
É imensa a tentação em reproduzir todos os poemas; que são só dez, dada a liricidade tão envolvente. Eu fico perdido, mas obedeço ao instinto:
BAILE NA ALDEIA
Bandindo seu diploma
de normalista
Judith lhe aponta para o timbre
de vulvas veludosas
e seios em pé.
(Dentro dele fora dele
um mar de literatura
dentro dele fora dele
apenas literatura
– sou um estribilho)
E Judith
noite afora
com a dança interminável.
Às golfadas, a cidade
escorre de sua boca
em leites de cabra
missas dominicais
cinemas e quermesses.
Enquanto isso
a clarineta constrói mil soluções
no ar poligonal.
*
ÍTACA
Na gaiola do amor
não cabem asas de condor.
Penélopes? Cefaléias!
Quanta saudade, odisseias…
*
GONZAGUIANA
Em tronco de velho freixo
exposto à lixa dos ventos
ao vitríolo do tempo
não gravo teu nome não:
gravo-o no meu coração.
*
O AMOR EXEMPLAR
“on doit ses oeuvres conseiler”
VILLON, Le Lais
1 – Ode
Mulher, à tua procura
sem temorme dividi
entre horizontes selvagens.
Esqueci muitas palavras
vaguei em bosque noturno
perdi-me em espelho fundo.
Como nada mais quisesse
atirei minha riqueza
aos ventos obstinados.
Mas em troca recebi
cabedais de mais valor
que os levados pela vento:
este gosto de silêncio
estas mãos decifradoras
esta ternura sem pressa.
Num horizonte selvagem,
te encontro, mulher, um dia.
Já não sou o que seria.
2 – Fábula
O mundo lhe pesa sobre os
ombros curvos, mas ele insiste em
partilhar todo naco de pão. A cada
esquina, seus passos oscilam entre o
salto e a queda.
Na mão direita leva uma pulseira
com guizos de jogral. Na esquerda
uma tocha cuja luz atrai
indiferentemente albatrozes e
morcegos.
Quando soar o último clarim,
seus olhos abrirão as cortinas do tédio
para esvoaçar, triunfantes, entre as
colunas da manhã.
3 – Epitalâmio
É hora de surdos
tambores pulsando
no sangue mais espesso.
É hora de roupas
vibráteis sobre luas
de alcovas plenilúnias.
É hora de líquido
plic – deslizando
– plac – sobre a pele.
É hora de bocas
em ofego, óleos
concêntricos, braços
crucifixos,
feras em assomo
para além da jaula.
É hora de refluxo;
confluem vaga e lava,
janelas amanhecem.
4 – Cantiga
Sobolos rios
um dia me achei
vago fantasma
de mendigo e rei.
Sobolos rios
pus o meu anel
meu manto furado
meu sol de papel.
Sobolos rios
parado esperei
algo de passagem
algo que não sei
Ah curso erradio
desses rios sem lei.
5 – Lais
Que as traças devorem
este papiro, resto
de inútil ciência.
Que a mudez apague
amanhã o equívoco
do não-dito ontem.
Que a chuva dissolva
o rastro dos meus passos
no chão.
Que só fique o eco
do teu nome no ar:
canção.
6 – Escudo
Um campo em blau com águia
desdobrada
e entre dedos de mão aberta em riste
a primeira luz da madrugada.
*
SÍSIFO
hoje agora me decido
depois amanhã hesito
o dia detém meu passo
a noite cala meu grito
deuses onde? ccéu existe?
céu existe? deuses onde?
um eco que faz perguntas
um espelho que responde
e eu sísifo tardo-triste
a tilintar correntes
de dilemas renitentes
lá me vou sem vez nem voz
rolar a pedra dos mudos
pela montanha dos sós
*
DA FILISTEIDA
1 – Competências
Nosso reino
é deste mundo, o vosso, de outro
que não este.
Nosso deus
fala claro: dar a César.
Vosso deus tem parábolas tão vagas…
Convenhamos: camelos
passaram sempre
por buracos de agulha.
2 – Consenso
E o amor, esse belo
mas incauto animal?
No quintal.
E a justiça, donzela
de balança e espada?
Vendada.
E a honra, severo
ornamento da sala?
Na vala.
E a hipocrisia, máscara
para todo gosto?
No rosto.
Que rosto? O teu
o meu o nosso –
filisteus.
*
HISTÓRIA ANTIGA
Estava o rei
atrás do cristal.
Vem o tempo
lhe fazer mal.
O tempo no homem:
Fora da prisão.
O homem no povo:
Senhor Capitão.
O povo no fogo:
O fogo sua lei.
O mal pelo bem
O bem pelo mal.
Que pálido o rei!
Que frágil o cristal!
*
ANTEMANHÃ NA VILA
“O sol da Vila é triste
Noel Rosa “
Um violão murmura coisas vagas.
No copo de cerveja agora um gosto
salobro de fastio e fim de noite.
Na distância do morro ainda soam
tamborins em surdina. O vento rasga
a folha de jornal que há pouco lia.
Ao voltar para casa sem amigos
os seus pés vão pisando distraídos
hemoptises de sol pelas calçadas.
É a hora fatal da madrugada.
A luz baça do dia que desponta
apaga o vulto do último sambista.
*
SONETO AO SONETO
(SOBRE MOTE)
“Perdeste em Leoni o decadente enredo
deu-te Pessoa estrelas imprevistas
DOMINGOS CARVALHO DA SILVA”
Perdeste em Leoni o decadente enrendo
e essa perda afinal te enriqueceu:
Deixaste de ser grato ao filisteu
que te queria digestivo e ledo.
Fez-te Augusto dos Anjos atro e azedo
resmungo de defunto. Míope Orfeu,
Bandeira te tossiu e converteu-te
em tísico e lírico segredo.
Sosígenes te deu pavões dementes,
Cassiano ardor trocadilhesco e dentes
para mascar amêndoas concretistas.
Pôs-te Vinícius mijos dissolventes.
Mas isso no intramar; no ultra,
entrementes,
deu-te Pessoa estrelas imprevistas.
*
NATUREZA MORTA
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“
Ótimo! Cumpri a ordem do instinto. Transcrevi o livro todo. Não dá para obedecer os arranjos gráficos que ELE e a Editora aplicaram aos poemas, até pra fazer o livro ficar mais atraente.Mas a solução está aqui: fazer José Paulo Paes lido também por meus amigos. É só isso que eu queria.
*&*